Olhares Palavras Momentos

terça-feira, junho 17, 2008

O teu sangue todo dado

Nunca o correio chegara como ontem. Nunca uma carta de fechada teve tão pouco. Nunca um momento se passou como este na secura da tua boca. Na guerra, algures num instante, numa bala perdida, do rosto que a disparou ao anónimo que deste o nome. O teu filho. A tua ânsia, o teu sangue todo dado, o teu estremecimento das noites enterradas com ele agora. Os mil lençóis da tua vigília, onde lhe entrelaçaste o crescer, guardados na lembrança, lavados e brancos até ontem e agora maculados de vermelho (o que dizer? o que ouvir? como se atravessa o peso do próximo segundo? desta vida?) Era um barco, um enorme barco que o levou, cheio de vida e de esperança cega de despedidas a outras tantas mulheres, mães filhas ali no cais onde partiu. A última coisa que deixaste foi a força obstinada da tua mão no seu braço ('que a marca fique até voltares') e o silêncio dos teus lábios cerrados na já saudade das palavras que ficam sempre por dizer.

terça-feira, junho 10, 2008

A janela, por detrás das palavras,

Sentou-se e deixou o médico repetir o já dito nas análises. Falava do cancro como se fosse uma pessoa, alguém dentro a crescer, olhos, boca, pernas num caos de células enlouquecidas. Na secretaria (reparou) um desenho de criança, uma casa um carro uma intenção de árvore e um mar naquela linha azul. No outro lado um cachimbo usado (os restos do tabaco dispersos numa discreta desordem igual à sua), um copo de água a meio, um desbarato de canetas caras. A janela, por detrás das palavras, a ameaçar uma última Primavera (‘…quanto ao tempo, seis meses um ano’) penúltima talvez. O médico levantou-se e no seu braço apertou a mão, uma força nem mais nem menos, aperfeiçoada noutros iguais, passados, já mortos. Responder o quê se não há pergunta?

terça-feira, junho 03, 2008

Haver

Há olhares onde encontro o silêncio que quero explicar. Há rios que são redes, vidas que são nadas, horas que são mais qualquer coisa. Há beijos que nunca morreram e outros que podiam ter nascido. Há esperança e sempre haverá começos. Há fins e coisas que nunca mais acabam. Há algo que não sei mas que desconfio que me falta. Há rostos que me atravessam como se fosse janela limpa e outros que me retêm ainda por longe que esteja. Há risos que me lembro e dores que já perdi. Há toques, certos, que atravessam epidermes e por cá ficam. Há ecos de outros tantos em tantos outros lugares. Há amores que redimem sempre por estranhos que sejam. Há momentos que de tão valiosos ninguém pode salvar.

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