Olhares Palavras Momentos

terça-feira, junho 30, 2009

Nas mesas alguém num gelado

Espero quinze minutos pelo cinema. Fecho o romance que trouxe e olho em volta largado que está o silêncio da minha leitura. Uma mulher eslava, bata branca a esconder-lhe a caspa e os rasgos da calça, ténis roçados e um chapéu da pala também branco e nele a ver-se dois brincos dourados (no pescoço um colar que penso ser de ouro, doutro tempo, doutra vida). Cerca-me a mesa com a esfregona, levanto os pés, obstáculos do seu serviço, e indiferente limpa o chão em redor antes de passar à mesa seguinte. As televisões penduradas, sincronizadas, desfilam mulheres perfeitas de vestidos improváveis e entre elas notícias desgarradas do mundo e da sua temperatura. Nas mesas alguém num gelado, uma mulher a engordar-se, olhos e alma num bolo de chocolate, um rapaz livro ao lado bloco e lápis e um desespero na cara pelas palavras que não saem. E eu nisto a escrevê-lo.

quinta-feira, junho 25, 2009

terça-feira, junho 23, 2009

como

O calor à vossa volta, o suor, a lama a entrar na sala, o sangue nas tuas mãos e nas mãos daquele homem desconhecido a quem entregas a vida do teu filho, nas lágrimas do teu marido ferido também por esta guerra que não entendes, nos gritos que da alma te abandonam e no desespero perdido deste tempo a passar. A enfermeira a rogar que saias e tu numa surdez presa ao chão à cegueira que adivinhas no vazio daqueles olhos que fizeste nascer e se esvai na tua impotência e perante o cenário e a batalha e os mortos lá fora. E aqueles mortos aí dentro de ti sempre a crescer em número, a dilatar a fila desses homens e mulheres e crianças (lembras-te do que parece um só dia de sol e paz e como a luz era forte e limpa então) (mas duvidas dessa memória, como pode ter sido o mundo justo depois do que vês agora?) que conheceste e que te atendem em silêncio.

quinta-feira, junho 18, 2009

terça-feira, junho 16, 2009

Lisboa enfim num começo de Outono

Eu a atravessar a rua, tempo livre para olhar o empedrado, a fina água das regas, as folhas caídas, um pombo que foge dos meus passos, Lisboa enfim num começo de Outono, num início de tarde e sem razão levanto a cabeça e no vidro do restaurante, do outro lado, uma mulher que fala a alguém mas um olhar que reconheço, igual ao de minha mãe a ver sair de casa meu pai, igual ao do meu avô a definhar pela última vez na sua cama (não me lembro de mais nada desse dia, como se naqueles olhos uma torrente um remoinho de esquecimento), à professora de matemática na sua última aula antes da operação e da reforma antecipada, ao cão da quinta, calado, a saber-se morrer, outros e outros e eu também num espelho a pensar partir. Mas avanço, o restaurante afasta-se e nisto a vê-la ainda, a perdê-la para qualquer nova frase que agora ensaia.

quinta-feira, junho 11, 2009

terça-feira, junho 09, 2009

nesse desiste que o corpo dela sustenta

A discussão começa por mais um nada e nela juntam-se os insultos típicos, o acusar de mil coisas repetidas, o expor de motivos cada dia mais estúpidos. De repente calam-se num silêncio moído, numa trégua que a nada leva mas que sempre surge. Encostam-se à janela, perto mas a olhar para fora, para o início da noite. Queres sair deste caminho mas não sabes como. E tu nessa falta de palavras, no vazio exausto desta casa e a vê-la, agora, a mexer no botão da camisa (e um pouco acima os seios dela, aquele pescoço que adoras, os lábios que te fazem esquecer tudo) a olhar para ti nesse porquê de gente, nesse interrogar pesado de tão infeliz, nesse desiste que o corpo dela sustenta. A que distância estão as vossas mãos? Quanto custa hoje a partilha de um sorriso? O que alaga ainda o espremer dos vossos anos? Não existe magia que vos resolva e a pouca esperança de crer nela foi-se há muito. Resta somente acreditar nisso.

quinta-feira, junho 04, 2009

terça-feira, junho 02, 2009

para lá da opacidade que te limita

Os rostos uns nos outros indistintos na luz que escapa ao palco. Como se não existisses, coberto que estás nessa tua personagem. Agora (agora!) quem és? Que palavras são estas que dizes? De um autor morto há décadas, traduzidas em proveito do público para lá da opacidade que te limita? Tuas? Sejam de quem for, é no estrado que se reagem, despoletando na tua companheira outras palavras (que conheces antes que ditas. Quando sobes o palco deixas de ser rede para ser órbita cumprida. Para ti o Teatro é o desvendar de um secreto, um refluir de promessas saciadas). Quem são vocês? Um casal de velhos, uma recordação perdida da mente do escritor. Ou os que cinco anos atrás aqueceram a mesma cama, as mesmas noites de partilha em imprecisos remoinhos de alegria e tristeza? Quando te calas, vês na plateia a testemunha cega que todas as sextas, na primeira fila, vos vem ouvir. Só no silêncio do palco podes ser, por segundos, tu mesmo. Os mesmos momentos em que te apagas nesta rapariga sem nome.

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