Olhares Palavras Momentos

sábado, outubro 31, 2009

que num sorriso a dizer-lhe não

Na rua cortada pelo fugir dos carros dois rios de gente à espera. No anónimo de cada cara uma vida, um desfilar de crónicas que não saberei contar. Em cada ruga um princípio de fim, em cada rasgo um talvez que nos separa. Os sinais trocam verdes e vermelhos e eis que os rios acordam e se movem um contra o outro, ladeando-se, numa torrente junta que se divide pelo metro, nos autocarros, num ou outro táxi, num caminho a pé pelas escadas (que nunca subi e que só agora observo, até ontem um vazio, um buraco de memória aqueles degraus). Um café aberto na rua, três senhoras, um vendedor de lotaria, parados naquele cheiro quente, num acordar de inverno que não viu sol ainda. Ele a pousar a chávena, a tentar vender uma terminação à senhora de casaco verde que num sorriso a dizer-lhe não. Depois, como por acordo os quatro a levantar sacos, a arrumar carteiras, a irem-se separados. Ficaram as mãos de quem arruma o balcão e uns olhos a ver passar a praça.

domingo, outubro 25, 2009

sexta-feira, outubro 23, 2009

É nesse corpo de papel branco

Em cada dia há um livro que nos diz ao ouvido 'Espero-te' (e é tão difícil ouvi-lo e seguir-lhe a ordem) ou 'Escuta-me' como se dissesse 'Escreve-me'. É num corpo de papel branco que a grafite ou a tinta tocam com violência com erotismo com o desespero das palavras retidas. É no virtual de um ecrã de teclas reflectidas nas mãos tanto nossas como deles. É no som de uma fita que me ouve nesse momento mágico de geração. E todos os que ficam por atender, todos os ceifados na nossa desistência, os inacabados pelo efeito da morte ou as versões insatisfeitas do nosso desejo formam uma imensa biblioteca dos livros que poderiam ter sido escritos. É a parte invisível, intangível e encantada da biblioteca de Babel. Os dias por imprimir estão lá, os nossos sonhos, o que não dissemos ainda ou nunca diremos, o silêncio intacto a que temos direito.

sábado, outubro 17, 2009

quinta-feira, outubro 15, 2009

um brilho perdido na madeira deste barco

A linha do céu para sempre distante nos teus olhos. A expressão das nuvens que caem na chuva, breve, a molhar o barco. O canto da terra no voo das aves. Tudo isto alegra esses rostos fechados na noite e na pesca que vos defende. O que da apanha é mais que sustento? O que do mundo vive para lá das fronteiras da vossa vida? Fazes tempo sentado a cuidar da rede (esses nós atados juntos, essa força na multidão de cordas frágeis, estes detalhes que acarinhas, o que te dizem? Serão vocês os nós ou o espaço que os separa? o que ainda desta rede por arranjar se aprende?). As horas passam no balouço que é nome para a mansidão latente das águas e tu sem palavras, essa rede nas mãos e um brilho perdido na madeira deste barco. Nunca viste o fundo do mar mas imagina-lo como a solidão que te inunda.

quinta-feira, outubro 08, 2009

terça-feira, outubro 06, 2009

das vidas outras fachadas como a tua

Tu na porta entre braços abertos e beijos fechados, o corredor límpido de tanta luz e ao fundo, na sala, a mesa nessa disposição militar de comida que tão bem dominas. O pó limpo da idade da casa, as memórias guardadas os gemidos os gritos e o choro num canto da dispensa que ninguém quer ver. Apenas o verniz do teu sorriso, a superfície polida do obrigado que de tanto repetido pelos anos se colou a ti, essa aparência que destoa da dos teus filhos cansados das festas dos sábados, das pessoas que nada lhes dizem (e que tanto falam), das vidas outras fachadas como a tua onde te sentes bem nelas reflectida porque no final, na soma que fazes quando, já noite, te deitas ao lado da fúria calada do teu marido, o que resulta são os mil reflexos da vossa ausência.

quinta-feira, outubro 01, 2009

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