Olhares Palavras Momentos

quinta-feira, março 25, 2010

tudo lixo e nesse lixo tu a descê-lo

Desces as escadas, a sujidade naqueles degraus é a mesma do prédio que as encerra, tudo podre tudo lixo e nesse lixo tu a descê-lo. O cão da rua, o rafeiro que há anos se acomoda na misericórdia do bairro (a mesma que te alimenta pela tua irmã, tão sozinha como tu, tão fechada nessas paredes de papel rasgado, vividas inteiras pelos pais, vossos, mortos e esquecidos quase após um ano, tudo vendido o que prestava, tudo o resto detritos que não se distinguem e a tua irmã, monumento vivo desse conjunto de momentos dispersos a que chamam passado, a dar-te ainda almoço jantar cama uma pessoa para ofenderes) e o cão na tua frente, olhos nos teus à espera do mesmo que tu e que não sabes o que seja, e nesses olhos um espelho no qual, cheio de uma raiva pútrida de tão grande que sempre incontida, arremessas um pontapé para que te saias da frente.

terça-feira, março 23, 2010

quinta-feira, março 18, 2010

E a mão tua que me segura um principio de aventura

Qualquer coisa me adivinha o teu rosto lado a lado que estamos. Neste silêncio das ruas que se banham em luz, tu e o dia que nos recebe, o fascínio desse momento que se quer perfeito. E a mão tua que me segura um principio de aventura, de perigo e sorte e de mil palavras outras. E o teu passo no meu passo, juntos os pés a pisar cidades, a deixar a noite num saciar de fome que nos invade. E já as ruas nesse recomeço são luzes que se acendem, vozes nas portas que se abrem, pessoas a iniciar dias (e uma velha na varanda a apanhar roupa seca do vento e na frente a escoar-se todo um reflexo de rio). Por um momento, o resto, o imenso do que não somos num canto irrisório porque a tua boca em mim num primeiro beijo.

terça-feira, março 16, 2010

quinta-feira, março 11, 2010

E nesse silêncio oiço outras coisas

Essa mão no meu ombro é um mundo que me toma, esses dedos que me apertam, essa presença tua, perto, quente, um tempo nosso na solidão do quarto. E os teus lábios na minha nuca num beijo que queria estendido, um parar de horas neste agora ansiado. E tu sem nada dizeres, sem palavras que não troques por gestos, sem gramática, verbos ou artigos que não possas fazer num sorriso que adivinho nas minhas costas. E nesse silêncio oiço coisas outras, oiço o zumbir amarelo do candeeiro da tua tia emigrada, oiço o tic-tac do relógio velho, oiço, lá fora (e tudo parece lá fora quando fazes o que agora fazes), um carro que passa numa poça de chuva, um ou dois gotejares de varanda, uma voz que chama alguém e um pulsar de coração, meu, que não sei já de quem é.

terça-feira, março 09, 2010

quinta-feira, março 04, 2010

e quando, lá em cima, se calam as gentes

Esta é outra Lisboa que me atravessa. Esta é um encruzilhar de ruas e avenidas que não conhecia mas onde também se murcha em coágulos de vida. Um casal discute no andar de cima e o prédio, a ceder na ruína de um século passado, a ouvi-los por inteiro. Somos todos, neste momento de noite onde estamos, aqueles gritos, aquelas mesmas acusações de ontem, somos o chorar das crianças, o ranger da madeira e os vidros a chocar em paredes (há sempre algo atirado, há sempre uma trajectória cortada, um baque num tremor, num anunciar de desastre eminente) e quando, lá em cima, se calam as gentes, o peso sobrado no escuro do tecto, o luar desfiado de persiana, a TV ligada a atravessar paredes, o pouco de Lisboa lá fora, tudo manchado em memórias que não se limpam.

terça-feira, março 02, 2010



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