outros passares despercebidos
Nesse teu passo pesado cada degrau um episódio, um momento de fim se caíres, um desafio à velhice, tua, que rejeitas. E chegando abaixo uma torrente de outros que vão e vêm no dia que termina, um mural de rostos fechados que não conheces (tanta gente numa cidade, tanto mistério encerrado neste milhão de vidas). Avanças como podes no contra-trânsito de trabalhar nos subúrbios, apanhar a tua linha azul e escapar num buraco mais adiante. Outros rostos outros corpos roçados outros passares despercebidos e tu nessa milésima viagem repetida a conheceres já os bancos, os defeitos das paredes, os tempos que te levam de A a B, até algumas pessoas de tanto partilhar distâncias mas sem saberes nomes de ninguém, sem saberes nada de importante excepto que, quando parares, quando saíres destes dias, serás tanto como uma pedra a menos na calçada.
Olhares Palavras Momentos
quinta-feira, fevereiro 25, 2010
terça-feira, fevereiro 23, 2010
quinta-feira, fevereiro 18, 2010
essa força ofuscada
Deitado nesta cama um menino a dormir. Eu que passava, detido no braço negro de feridas vislumbradas no branco das ligaduras. Ainda no braço um canal transparente a terminar ao alto numa cascata em câmara lenta. E naquele plac plac de soro, imagino-lhe a noite, o pesadelo encarnado desta criança que o irá reviver demasiadas vezes. Foi o pai (disse-me, depois, a enfermeira, e nela uns olhos tristes de tanto afastar dias nestes quartos), entre o álcool e uma qualquer discussão provocada, a violência cega, essa força ofuscada contra a impotência da infância. No outro lado, noutra cama, outro menino a dormir e uma mãe acordada, mão esquerda dada naquelas mãos e na outra, apertado, um urso de peluche, a velar-lhe o sono de olhos secos e, imagino, com a boca presa num engulho de vida.
Por João Neto às 09:35 Etiquetas: silencios 0 comentário(s)
terça-feira, fevereiro 16, 2010
quinta-feira, fevereiro 11, 2010
nunca me falaste desse minuto de silêncio
Eis que chegas a casa, o barulho das chaves no cinzeiro limpo da entrada, o casaco no cabide, o chapéu-de-chuva sacudido e aberto a indicar-te a passagem. Uma torneira aberta e fechada, os sapatos descalçados, o intervalo que sempre demoras sentado na cama (nunca me falaste desse minuto de silêncio que nos impões, esse momento que não deslindo, essa resignação que imagino e uma arena de medos que se levanta cada vez que te sentas para calçar os chinelos). Depois outra vez tu no corredor, na minha direcção, um sorriso treinado, moldado nos anos, o beijo na testa, a nossa troca de frases do costume (onde estamos todos bem, onde tudo está normal no trabalho, onde o tempo podia estar pior e o trânsito melhor). Depois as revistas, o semanário relido, o jantar (e o quanto está boa a comida, o quanto de boa cozinheira os teus lábios nessa simpatia distante me acusam) e essa partilha que fazemos da sala, disjunta, separada, como se fossemos duas casas, dois trajectos. E após a cozinha arrumada, a TV aberta às telenovelas, às vidas recriadas e recicladas daquela gente famosa, aos concursos (e nas respostas, o único momento em que somos casal, um querer para o mesmo lado) e no fim, na cama, sem dizeres boa noite (apenas o monótono beijo que assinala esta nossa existência), virado para a parede, permaneces calado na companhia da tua insónia.
Por João Neto às 13:32 Etiquetas: silencios 0 comentário(s)
terça-feira, fevereiro 09, 2010
quinta-feira, fevereiro 04, 2010
um anseio que te invade há anos
O tapete mal posto e tu levantado nesse acerto. A parede branca e a fotografia na moldura torta que não te deixam descansar. As gotas da torneira na cozinha, o som da falta de óleo nessas portas abertas, o rosto de um anseio que te invade há anos. O que lá, na rua, te assusta? O que te prende entre as paredes mil vezes cansadas desta casa? Qual o mal o nome dessa sujeição que te faz menos pessoa do que foste? O que do mundo que a televisão da sala mostra é meritório da tua ausência? Contra o quê perdes tu? Como explicar à família que resta ainda que o complicado não é culpa tua, que o frio desse olhar é de fora, que as palavras por dizer são preço carregado e não angústia? Como fazer-lhes ver uma doença que se faz carne?
Por João Neto às 09:31 Etiquetas: silencios 0 comentário(s)
terça-feira, fevereiro 02, 2010
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