Soslaio

Olhares Palavras Momentos

quinta-feira, outubro 28, 2010

e toda uma história que adivinho naquelas lágrimas presas

Um relógio branco na parede creme a ditar-nos horas. Uma mesa ao centro, sete cadeiras e um sofá verde roçado por quantos braços passados nesta sala de espera. Somos seis na esperança de uma consulta já de si atrasada, seis desconfortos expostos, corpos de um vigor adiado ou perdido, seis expectativas de um resolver de problema, esperanças de saúde que a porta fechada de um senhor doutor feito em anos de faculdade e hospital prenuncia. Ao meu lado, uma senhora a escolher companhia com os dedos nas revistas, entre juras impressas a cor e em imagens de sonho. Um casal novo, ele de olhar distante a transpor as paredes deste hospital, ela a afagar-lhe o cabelo e toda uma história que adivinho naquelas lágrimas presas. Um velho que troteia para si uma melodia esquecida (e de um bolso o tirar do lenço avermelhado sujo do seu sangue onde noto as curvas de um LV estampado). Ainda um outro homem, tão novo quanto eu de olhos fechados nos minutos que não passam, um livro entre as pernas fechadas, as mãos dadas, a lombada está-me oposta e não sei do que se trata (e, por instantes, eu apenas no puzzle daquele título por saber). Perto das revistas, na mesma mesa, um cinzeiro azul (um desafio do sinal descolado que proíbe fumar) e nele um remoinho de pastilhas, uma beata e o repositório dos terrores por nós e em silêncio partilhados.

terça-feira, outubro 26, 2010

 

quinta-feira, outubro 21, 2010

uma cadeira velha, vermelha,

Fecho o livro terminado. Foram duas horas de distância, longe da areia, da água e da multidão que nos vizinha. Como no fim de uma viagem olho em redor e tudo se move, jogos de raquete, corridas e passeios, um cão e uma bola juntos, crianças que fogem do chegar quebrado das ondas, um mar de gente neste mar quente de meio-dia. Ao nosso lado, um homem (50 anos e uma cadeira velha, vermelha, com ele em cima) a ver o que sobra do verdadeiro mar, no barco de carga que para sul se afasta (talvez este homem não esteja aqui mas numa qualquer memória revisitada, como outros tantos - eu - que se vêm trazidos à praia por compromissos que não os nossos), e nesse olhar a mulher na revista de pessoas bonitas a fazer comentários que ninguém responde. Sobre esta luz que quase me cega estendo o braço à procura da mão dela e toco-lhe. Ela aperta-me os dedos em resposta e sem palavras diz-me estar o mundo ainda inteiro.

terça-feira, outubro 19, 2010

quinta-feira, outubro 14, 2010

Dorme quem nele trabalhou para o matar

O incêndio passou. Dorme quem nele trabalhou para o matar. Um sono de cansaço justo (por um dia não há olhos no tecto, por entre o escuro, a pensar em contas, filhos, neste outro ao lado, em nós de vida) e do barulho ensurdecedor resta agora o calor de verão abafado, um manto de fuligem e um deserto de sonhos desfeitos. As aldeias também se comem e esta ficou a metade, as paredes sozinhas, testemunhas de passado, o cheiro a carne dos animais presos à surpresa do desastre e, lentos, os habitantes voltam, hoje esquecidos de ontem, num choque num eco por vir ainda. É um sentir de desperdício esta falta de cor, esta morte pintada por entre pedras de serra.

terça-feira, outubro 12, 2010


quinta-feira, outubro 07, 2010

Ela

São os anos a falar-te, são discussões e risos, ódios contidos, impulsos largados, é um construir de rugas, de primeiros erros, de sonhos queimados que te desfoca a vida. Já agarraste o pulso desta terra que pisas? Não me respondas. Vai um dia, num caminho a pé feito, de sol ou chuva tanto faz, mas fá-lo pelo meio. Não percorras as estradas que facilitam o caminho, não te faças surdo ao ruído branco do mundo, não continues até que, parado, sentires o que há para ver. E depois avança até que algo ou alguém te diga (e, de cada vez, serás sempre tu projectado) para te deteres novamente. Uma escada nestas paragens e arranques, um percurso nesta órbita de pasmos. E no contacto das coisas a abertura de portas que, para poder chegar cansados e a casa na noite seguinte, mantemos a custo fechadas.

terça-feira, outubro 05, 2010

quinta-feira, setembro 30, 2010

Ele

Sabes o que quero? Sabes mesmo de onde retiro este possível? Quão complicada é a rede que tecemos, este ritmo de vida composto em fios de semanas iguais, entre silêncios e gestos cúmplices que a partilha nos extrai e expõe. Desejo seguir a linha que resgatasse um motivo, a definição segura de onde estamos, para onde vamos, do sentido das coisas que fazemos. Mas depois confundo, ou porque é difícil seguir o raciocínio até ao seu fim (e a realidade faz muito barulho) ou porque parte desse passado que nos fez nunca ocorreu. São procissões de imagens que queria ter visto e estão, sem remédio, misturadas aos momentos que nos foram dados, um filamento de anseios nunca experimentados. E o resto, ecos, sombras, imperfeições a custo feitas. A confiança que tenho no mundo não é maior que tu nas minhas costas à beira do abismo. Resta-nos pouco de valor, e disso raramente nos lembramos.

terça-feira, setembro 28, 2010


quinta-feira, setembro 23, 2010

de mão dada num guarda-chuva

Dois dias de chuva para atravessar molhada a cidade. No autocarro, os lugares ocupados, eu de pé a acompanhar balanços. É de manhã, a madrugada passou há horas e ainda assim o olhar partilhado de quem se levanta. À minha volta pequenos afazeres, pequenos nadas para passar a viagem (uma rapariga e uma caneta a rabiscar a apagar vazios no jornal, uma mulher mais velha de capuz posto encostada ao vidro a querer dormitar, um casal de velhotes de mão dada num guarda-chuva, dois miúdos a dedilhar no telemóvel e o resto das pessoas nesse nada que não transponho), e o tempo passa perdido em curvas e rectas riscadas de branco e amarelo, nas paragens de sempre, nos fluxos de carne e roupa que obedecem às portas. Horas que do silêncio pouco fica por dizer.

quinta-feira, junho 24, 2010

um rio, um mar esta noite

O comboio a acordar do torpor metálico e tu sentado ainda de saco verde entre as pernas. Esta mulher tua no teu braço, a segurar o corpo e tu já na promessa da distância, na esperança triste de um futuro melhor, na vida que não queres perder sem combate mas aquelas mãos aqueles dedos em ti e tu partido em dois (sentes-te metade, a outra deixaste nesta noite nos lençóis novos que ela pôs, nas toalhas limpas e no banho que pela primeira vez te deu, entre o silêncio deixado de lágrimas e um rio, um mar esta noite) e o apito que te reclama a presença. O que dizer neste termo que vos resta? Entre tanta coisa forçada qual o espaço que vos sobra? Outros iguais a subir as escadas, a entrar sozinhos, as mãos no vidro e o dever de os seguir (à tua volta a mesma cena em outras caras, outros braços, outros sulcos cavados). Não te chegam as palavras e agora os lábios dela nos teus. Esse adeus disfarçado de beijo.

terça-feira, junho 22, 2010



quinta-feira, junho 17, 2010

que rosto teu nessas histórias?

Arranjas na toalha a procissão de pratos, talheres e acessórios outros para o almoço que começa já atrasado. Nesta casa emprestada, neste lado de monte apontado a sul sobre o verão que vos recebe, tu à espera que ele saia do escritório. De tanto amontoar folhas (na velha máquina de escrever, lenta, uma companhia, um sentimento preso que o recusa à compra de computador, quarenta anos a premir nela as mesmas vinte seis letras gastas) de tanto erigir esse ritmo diário que o deixe livre do mundo que lhe vai lá dentro, que tamanho ficaste tu? que sobra nas obras que de ano a ano saem em alegrias literárias de desconhecidos? que rosto teu nessas histórias? E abres a porta para o chamar e naquela quietude ele a sorrir-te entre uma página e os teus olhos.

terça-feira, junho 15, 2010


quinta-feira, junho 10, 2010

um pouco desse riso,

Em redor uma floresta de metal a encerrar caras. Por entre os vidros outros como eu à espera. Alguém que se ri sozinho (naquele riso a minha ignorância da sua origem, o ritmo dos dias e um pouco de inveja do meu desanimo repetido deste trânsito parado) e penso do que rirá ele, se de um programa qualquer de rádio, se de uma voz ao telefone, se de uma boa lembrança da noite ou do ano passado. No meu carro agora muda a música e viro-me obediente para o outro lado. Uma mulher que olha para os sinais, para a rua, para o mundo de pessoas que nos define e naquele olhar um qualquer de triste, um também não saber meu dessa ausência de riso, tão abundante no homem que, na minha nuca, imagino ainda a rir dessa graça secreta e silenciosa que não ouvirei. Queria dar-lhe um pouco desse riso, ser ponte e justiça neste momento condenado de semáforo. E sobre nós vagas de pernas cruzadas na passadeira diante da luz verde de um boneco. Depois a sua troca com o vermelho e somos, novamente e apenas, os que seguem em frente.

terça-feira, junho 08, 2010


quinta-feira, junho 03, 2010

um torpor que também a ti te guia os braços

De mão em mão entregas pedaços de papel impresso com notícias de ontem. Nessas mãos abertas um testemunho passado, um ou outro olhar em ti mas para a maioria és um invisível, um algo que se apaga nessa entrega, um rosto igual entre mil esquecidos. É inverno e na quase chuva da manhã espalhas centenas de jornais iguais, grátis, lidos na pressa do caminho, deitados na rua a sujar de tinta e papel a cidade. Um regurgitar de carros e pessoas esta avenida, um cruzar de apatias, um torpor que também a ti te guia os braços, levantados, nesse suportar cansado de mais um dia. E, sem qualquer palavra dita, lá vão todos a afastar-se, a derramar-se desse centro, por ínfimo que seja, que és tu no teu emprego.

terça-feira, junho 01, 2010

quinta-feira, maio 27, 2010

São rostos limpos de cara aqueles que defrontas

A casa sozinha para lá da sala onde te encontras. O frio da noite a cercar o calor do teu corpo deitado na sala. Todos esses papéis são dossiers a contar os cinzentos dos dias, são vidas catalogadas em processos do teu serviço, defesas e argumentos que afastam nomes, abstracções legais e decretos de decretos. São rostos limpos de cara aqueles que defrontas ainda acordada. A TV nas notícias repetida a cada meia-hora, outras vozes que misturam as tuas e fechas os olhos de sono, horas perdidas de esforço nesse navegar que escolheste nesse mar do insondável. Ainda estás vestida de trabalho, ainda na preocupação que não te permites largar marcada nessa roupa que não despes (menos os sapatos, deixados à porta no tapete desbotado que trouxeste dos teus pais, a gastar-se em cada chegada tua, assim como um pouco menos de ti que entra, cada vez que chegas sozinha sempre à espera de ninguém).

terça-feira, maio 25, 2010

quinta-feira, maio 20, 2010

é sempre de alcatrão a estrada que te arrasta

Nesta monotonia em pacotes de 24 horas tu sentado de novo no autocarro. No caminho igual os mesmos carros, as mesmas pessoas nos trilhos cruzados de vida, o mesmo céu ou as mesmas nuvens. É sempre água que chove, é sempre de alcatrão a estrada que te arrasta, é sempre o mundo que roda a levar-te. Na paragem do costume a multidão que entra e nos mesmos instantes tudo se enche num apertão de gente, de braços levantados em distâncias de pessoas. As travagens que se sucedem (e nesse balançar não te lembras se vais para casa ou para o emprego tal é o normal solitário do teu costume, indiferenciado, entre as folhas que ordenas na repartição e as outras a custo viradas nas viagens de romance) e quando a multidão sai para entrar no barco que as carrega ao rio, nesse espaço vazio ou quase, reparas agora no sorriso antes escondido da mulher que te pergunta, por exemplo, as horas.

terça-feira, maio 18, 2010

quinta-feira, maio 13, 2010

as únicas palavras que ainda fala aos outros

Bates com os dedos no copo vazio, a televisão nas vozes surdas misturadas na gordura das paredes, na humidade da noite, nos risos grunhidos das outras mesas. O balcão um mar de álcool que se esvai, os dos costume nos cantos do costume, tudo um receber de perda, um querer de nada (mas o relógio avança, e a mulher do dono ainda a servir, naqueles braços uma vontade perdida, um desistir de anos já passados e só o eventual de um sorriso quando lhe passa na memória a filha na faculdade em Coimbra, as únicas palavras que ainda fala aos outros). É com cerveja que lavas o resto e em ti, quando te levantas, um desbalanço, um olhar sem centro, uma vontade de resolver o mundo aos murros e vocês todos juntos nesta aldeia que morre. Faz-se um cemitério com pouca coisa.

terça-feira, maio 11, 2010

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