Olhares Palavras Momentos

terça-feira, março 31, 2009

um querer de nuvem

Domingo. Paro o carro no semáforo da estação de comboios. Sente-se o outono nas poucas árvores despidas e no calor restado de um meio de tarde. No passeio um banco com gente sentada mas outros em pé, alguns reformados perdidos no tempo, um polícia que imagino no fim de turno e um abraço de namorados. Todos olham o céu (eu também). Nele um quase de pintura, um revoar de voos cruzados, um querer de nuvem nas centenas de estorninhos que se seguem uns aos outros. E aquele largo (tão ruidoso nos outros dias) reduzido à paixão relembrada de criança que nos nossos olhos a passarada se tornou. Foram um pontilhado de castanho num azul sem nuvens, um sorriso partilhado por todos e um minuto que se fez diferente.

quinta-feira, março 26, 2009

terça-feira, março 24, 2009

esta num medo que nada revela

São teus na medida que é possível hoje o serem. Pagas-lhes salário, contribuições, quase todos os seguros, a alguns até casa e comida. O teu ocorrer diário é enterrado no pouco que vêm ou ouvem. Seguem-te as ordens, os desejos, a rotina que fizeste de cada dia. Passeias na casa, ao fim da noite, cansado, velho (estás velho dizes às paredes erguidas pelo teu pai na esperança podre dos anos trinta), o som dos passos anuncia-te aos quartos vazios, desces a escada, atravessas a entrada e segues a luz amarela da cozinha. Lá dentro, todos param. A governanta num qualquer dizer à nova criada, esta num medo que nada revela, o motorista e um pequeno copo vazio sujo de vinho, o jardineiro nessa ausência de alegria que vos infesta. Sais. Resta-te o som dos passos e o silêncio frio desta gente a quem pagas a proximidade.

quinta-feira, março 19, 2009

terça-feira, março 17, 2009

para que lhe oiçam o choro

Seguras a porta e as palavras. Vês-lhe descer o primeiro degrau mas não consegues dizer nada. Somente seis meses e tudo mudou. De um trabalho, de uma intenção honesta de estudo, de um viver quase agradável. Agora um inferno, o vosso. Como começou ele a perder-se? Quem o levou, o convenceu, o mudou? (antes querias um nome para imputar esta raiva que não te deixa mas apenas ficou o medo que te calhe o dele). A impotência nascida nessa parede que o teu filho se tornou, mudo a argumentos, à tua razão possível, a esse olhar do mundo que nunca foi vosso, a impotência que te gela o sangue, a impotência de vê-la, a ela que o gerou, na sala sentada e no desespero perdido daquelas mãos, naqueles dedos entre malhas azuis, naqueles dedos a carregar do botão para calar a TV para que lhe oiçam o choro. Mas o que pode ele ouvir? O que achas poder ele vir a saber agora que desce esta escada tornada fronteira?

quinta-feira, março 12, 2009

terça-feira, março 10, 2009

mas

Dou-me aos passos no caminho que me leva a casa. Um jardim, umas centenas de metros quadrados de relva reposta, mantida em regadores de horário militar, duas árvores (nunca sei, ou esqueço-me para lá dos pinheiros e eucaliptos, os nomes desta miríade de espécies que habitam tanto os nossos dias como a nossa infância) e hoje uma toalha. Uma mulher, de joelhos, dá de beber à satisfação de um cão por um copo de plástico. Uma menina, de pé, três quatro anos, observa-os como se tudo fosse uma primeira vez. Da varanda, um velho vê-nos a todos, calado e no rosto uma história só sua (memórias não escritas, sonhos por declarar, viagens e beijos antigos, outros jardins meninas saudades) mas naquelas mãos um sorriso.

quinta-feira, março 05, 2009

terça-feira, março 03, 2009


mas nela (ainda) um vislumbre de sorriso

O marido foi-se (anos e anos atrás, perderam essa data dos calendários). Ficou-lhe o apartamento, um gato velho e cego de um passado morto e um hábito de caminho que a leva ao jornal (sobre futebol, sobre sabe-se lá o quê. Nunca os abriu, diz-se na rua, mas que os junta em colunas fúnebres no escritório que fora dele). Na varanda, no fim do dia quando o sol se esconde no Castelo, vê os barcos que sucedem, as gentes no mar da rua, os pombos nesse esvoaçar deles, todos de porto em porto com destino traçado (pergunto-me, quando a vejo, o que pensa ainda nessa varanda, o que a fará substituir o sol na decadência anunciada deste bairro?). De resto é dor e perda mas nela (ainda) um vislumbre de sorriso, um carinho num aceno, a esperança num momento (fugaz sim mas qual não o é?), uma adivinha de secura.

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